sexta-feira, 14 de março de 2008

Sem explicação

É incrível como essas pequenas epifanias cotidianas nos assaltam sem mais nem menos e acabam por nos despejar algumas doses de filosofia barata que mais parecem tiradas de um livro desse de auto-ajuda. Bem, acabei de voltar, pra variar do bar. Encontrei por lá um grande amigo e, conversando, acabei por constatar o óbvio mais uma vez: eu gosto de sofrer. Não cabe aqui dizer o porque da conclusão. Talvez poucos tenham coragem de dizer verdades óbvias como essa, mas eu que orgulho de ser sempre o avesso do avesso, assumo minhas paixões, dependências e defeitos sem fazer como uns e outros por aí que não hesitam em jogar a culpa de suas frustrações e infelicidades em cima dos outros.
Temos que estar cônscios de que as perdas e as conquistas pertencem exclusivamente a nós mesmos. Eu, com esse meu lado semi-massoquista, compro os riscos e parto pro bar ou seja pra onde for que se encontre meu objeto obsediado, mesmo sabendo que a noite pode vir a ser uma tragédia grega.
Mas eu gosto, com o tempo aprendi a saber que eu simplesmente não me encaixo. Sou inteligente demais pra ser burro, ignorante demais pra ser intelectual, gay demais pra ser hétero, macho demais pra bicha, amigo ao invés de amante, romântico demais pra ser insensível, decidido demais pra me acovardar, acomodado demais pra mudar deveras...etc, etc.
Simplesmente não me encaixo. Sou mais uma "Charada Sincopada que ninguém da roda decifra nos serões da província", como disse Pessoa.Alguém que, por mais que se aproxime de vários estereótipos- e, talvez por causa disso- não pertenço completamente a nenhum grupo fecahdo.Sou fugidio demais até pra eu mesmo.
Em tempo: a noite não terminou em uma tragédia grega, graças ao meu outro talento, o de me adaptar. Termino o post com José Régio, falando meu mote pessoal.

Cântico negro
José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!



**Leia ouvindo "Estranha Forma de Vida" com Maria Bethânia

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